domingo, 16 de março de 2008

16 de Março de 1974 (3) - Contagem decrescente

Umas breves notas pessoais sobre esta data. Em 16 de Março de 1974 eu era Capitão Miliciano, comandava uma Companhia de Cavalaria sediada no Sul da Guiné ( Cantanhez ) e estava de férias em Lisboa. Nesse sábado tinha decidido passar a noite com um grupo de amigos, prolongando a farra até ao raiar da manhã de domingo. Ainda não levava 4 horas de sono, quando tocou o telefone. Meio estremunhado ouvi a voz excitada de um amigo dizendo que tinha havido uma tentativa de golpe militar no sábado. O quê?! Acordei, definitivamente . Em tempo recorde aprontei-me para ir ter com os meus amigos. Ainda hesitei se deveria fardar-me, mas decidi-me pelas calças de ganga e saí. Fardar-me para quê? Nem sequer se sabia que golpe seria este. Na roda de amigos as informações eram escassas. Não havia notícias de colunas militares em Lisboa. Mas a meio da tarde, de domingo, já se sabia que a "tropa" tinha voltado para o quartel no mesmo dia em que tinha saido. A discussão seguia acalorada entre nós. Provocação do regime, para fazer "saltar" a oposição? Um golpe falhado por erro de cálculo dos seus executantes? Um simples exercício militar confundido com um golpe? Um exercício de intimidação? Na Guiné-Bissau desde 1973 que circulavam notícias de reuniões de oficiais descontentes. Tudo o que "mexesse" contra a ditadura seria bem vindo, mas as poucas notícias que tínhamos não eram muito animadoras. Na manhã de segunda feira eu iria ao quartel dos Adidos, na Calçada da Ajuda, para tentar obter mais informações . Assim fiz, mas sem grande êxito. Então decidi ir a Mafra, onde certamente encontraria militares meus conhecidos e de confiança, que poderiam saber mais do que se tinha passado. Num ambiente desconfortável, muito tenso , nada propício a conversas de natureza conspirativa, lá encontrei com quem falar. Por Mafra passavam todos os futuros oficiais milicianos fazendo o seu curso de cadetes e alguns outros fazendo o seu curso de comandante de companhia. Num estado de espírito revelando algum desânimo disseram-me que os militares do Regimento de Infantaria 5, que tinham saído em coluna militar em direcção a Lisboa, estavam detidos, e alguns tinham sido transferidos para outros quartéis, sob prisão. Os factos vieram-se a revelar mais negros do que me disseram então. O objectivo seria depor Marcelo Caetano! Ninguem sabia explicar porque tinha falhado, nem quem estava por detrás da iniciativa. O que parecia mais evidente, e alguns oficiais expressavam-no, era prestar urgente solidariedade a quem estava detido. Na noite de segunda feira, já em Lisboa e entre amigos, o quadro parecia-nos mais claro: a iniciativa tinha falhado e o regime iria intensificar a repressão. Poucos dias depois regressei à Guiné. O comunicado do Partido que transcrevo num post mais abaixo ainda não me tinha chegado às mãos. No aeroporto encontrei o Barros Moura que aguardava o voo para Lisboa onde gozaria umas curtas férias. Em Coimbra tínhamos participado na luta estudantil de 1969, por vezes não coincidindo na estratégia a seguir mas sempre do mesmo lado da barricada. No pouco tempo que tivemos para conversar dei-lhe conta do que sabia do "golpe das Caldas", e ele das reuniões que em Bissau tinham acontecido e de algumas abordagens a milicianos. Na despedida pediu-me que tentasse saber mais, que contactasse alguns oficiais do quadro permanente com quem tivesse mais confiança. Em Lisboa ele iria recolher mais informações. No regresso temos que falar. Isto está em contagem decrescente. E estava mesmo. Ele foi para Lisboa, eu para o Sul da Guiné e reencontramo-nos poucos dias depois do 25 de Abril, em Bissau, com o José Barata, na nossa primeira reunião de Partido em tempos de Liberdade. Uns tempos depois, com o regresso da minha companhia a Bissau, estávamos ambos trabalhando no secretariado do MFA da Guiné. Uns anos mais tarde desencontrámo-nos. O Barata Moura optou por outros caminhos e eu continuo a fazer a minha contagem decrescente, pela Democracia política, económica, cultural e social que Portugal e os portugueses merecem, pela Democracia Avançada Rumo ao Socialismo.
Nesta nota apenas refiro, deliberadamente, os dois nomes de quem comigo participou mais directa e políticamente na contagem decrescente que em conjunto fomos fazendo na Guiné e que deu titulo a este post . Os meus amigos percebem porquê. Dos amigos que deixei em Lisboa, naquele mês de Março, alguns foram presos e só libertados a 26 de Abril. (continua)

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